PC à brasileira
Se 0 projeto emplacar, o Linux pode
incorporar milhões de novos usuários
O Brasil, que já dispõe de uma das melhores
distribuições Linux do mundo, que já se revelou
um dos mercados mais receptivos à aceitação do
software livre, e que tem sido um solo fértil para o crescimento
da Internet, ainda precisava ultrapassar um último obstáculo
à popularização do acesso à
informatização e à Internet: o preço
do hardware e o valor dos serviços de
telecomunicações, proibitivos para o poder aquisitivo da
maior parte dos brasileiros.
Considerando-se o cenário mundial e as tendências da poderosa
indústria da computação, essa conjuntura perduraria por
muitos e muitos anos, e só mesmo a criatividade brasileira para
reverter essa situação. Dessa maneira, no início
deste ano, um criativo grupo de pesquisadores da Universidade .
Federal de Minas Gerais apresentou ao Ministério da
Ciência e Tecnologia um protótipo de um computador
pessoal com pleno acesso à Internet, e que teria preço
entre R$ 400,00 e R$ 500,00 considerando-se a
fabricação em larga escala e isenção de
impostos e que seria comercializado com financiamento em
até 24 vezes pela Caixa Econômica Federal.
Temporariamente chamado de micro popular, é uma idéia
simples como o ovo de Colombo: um computador pessoal, concebido sem
partes móveis, para evitar problemas decorrentes de manuseio
incorreto, rodando Linux, projetado para levar a Internet de
graça a escolas, postos de saúde, microempresas e
pequenas comunidades.
"Esta é uma alternativa original, com potencial para
resolver um dos maiores obstáculos à
democratização do acesso à Internet, que é
o alto custo dos equipamentos", avaliou na ocasião o
ministro da Ciência e Tecnologia, Ronaldo Sardenberg.
O anúncio do micro popular veio a público em 31 de
janeiro deste ano e, como não poderia deixar de ser,
entusiasmou a comunidade Linux brasileira, mas também provocou
inúmeras reações de descrédito e
desdém. E a verdade é que, tanto o grupo do software
livre tem razão para se entusiasmar, como o outro grupo tem
motivos para desconfiar da proposta. Afinal, ainda há muitos
pontos por definir. Por exemplo, quanto à viabilidade
industrial do projeto de hardware, quanto à melhor plataforma
de software ou quanto à garantia de compatibilidade com
gerações futuras. Tudo isso está sendo amplamente
discutido, inclusive com a participação de fabricantes
de equipamentos, desenvolvedores de software, operadoras de
telecomunicações e universidades.
E o sentimento geral, como resume o professor Sérgio Vale
Aguiar Campos, coordenador do projeto na Universidade Federal de Minas
Gerais, é de que essa discussão ainda se prolongue por
alguns meses, mas que o projeto vingue, porque há muitos
interesses a favor, como das operadoras de
telecomunicações, que cobiçam esse mercado
estimado em milhões de assinantes potenciais de seus
serviços.
Isso tornou-se um assunto bem polêmico, pois acontece
justamente quando está sendo feita a maior compra de
equipamentos já anunciada pelo governo brasileiro. Esses
equipamentos, destinados às áreas de
educação e saúde, têm o objetivo de
interligar escolas e unidades de saúde via Internet.
Para se ter uma idéia da grandeza desse projeto, a ser
implementado com recursos do Fust Fundo de
Universalização dos Serviços de
Telecomunicações, só na área de
educação estão previstos investimentos de R$ 925
milhões para interligar 13 mil escolas e 7 milhões de
alunos em todo o País.
Para viabilizar o projeto, os gestores do Fust já trabalham
na criação de um conjunto de ações para
equacionar o problema do custo das telecomunicações,
tais como a contratação, pelo governo, de linhas para
conexão à Internet que seriam alocadas para escolas e
postos de saúde. Ou então, a criação de
numeração telefônica específica para acesso
à Internet, denominada 0i00, que não só
permitiria ganhos técnicos na utilização da
infra-estrutura existente no País, como também
viabilizaria um sistema racional e transparente de
utilização de recursos do Fust.
Caso o Fust tivesse optado por adotar o equipamento dos
pesquisadores da UFMG, a redução de custo por
estação permitiria comprar mais de 400 mil
máquinas em vez das 300 mil previstas na primeira
licitação anunciada pelo governo.
Apresentado em Brasília ao presidente Fernando Henrique
Cardoso, o projeto do micro popular foi recebido com grande
entusiasmo. E uma chuva de perguntas tingiu de dúvidas o feito.
Do lado da indústria tradicional de software e hardware a
sensação era de ver para crer. Do lado da comunidade
Linux, o Slashdot recebeu mais de quinhentos comentários
referentes à notícia original, sites como o Ponto BR
ficaram congestionados, e threads imensas foram geradas na lista
Linux-BR, todos comentando o anúncio e se perguntando:
"Como? Quando? Quanto?".
Para responder a estas e outras questões, nada melhor do que
ir à fonte, ao Departamento de Ciência da
Computação da UFMG, para conhecer a máquina de
perto.
A Máquina
O protótipo do computador encontra-se na sala 3005 do
prédio do Instituto de Ciências Exatas da UFMG (ICEx). E
na verdade são dois protótipos montados um ao lado do
outro, em gabinetes transparentes. O hardware, familiar a qualquer
pessoa que tenha algum conhecimento do assunto, é baseado numa
placa-mãe PC-Chips, daquelas que trazem até a pia da
cozinha embutida: modem, rede, som, vídeo, tudo onboard (e
funcionando bem). Por questões de facilidade de
configuração o modem onboard foi "descartado"
e um modem PCI foi usado em seu lugar. Uma placa extra com um
Disk-On-Chip de 16 Mb, fazendo as vezes de HD e armazenando o sistema
operacional e aplicativos, é a única peça que
foge um pouco ao padrão. O processador escolhido para os
protótipos foi um AMD K6-2 de 500 MHz. De resto, há os
tradicionais teclado, monitor e mouse, além de duas caixinhas
de som, claro, já que ninguém é de ferro.
Por se tratar de um PC comum, ao menos no protótipo
há total possibilidade de expansão da máquina.
Nada o impede, por exemplo, de desinstalar a placa com o disco Flash,
colocar um drive de disquete, um HD (ou mesmo um leitor de CD-ROM) e
instalar a distribuição Linux favorita. Salienta-se que
essa possibilidade existe no protótipo, porque nada
proíbe os eventuais fabricantes de projetar, para a
versão industrial, uma placa "tudo em um", sem
capacidade de expansão, mas que certamente reduziria o custo
final.
O Software
OK, se a máquina é um PC "padrão" o
que a faz tão diferente? O software. Após estudar
algumas das distribuições voltadas a dispositivos
embutidos, chegou-se à conclusão de que não havia
funcionalidade suficiente nelas e optou-se por criar uma
distribuição própria do Linux. Compilando os
pacotes apenas com a funcionalidade necessária e utilizando um
esquema de compactação de dados, a equipe conseguiu
colocar todo o sistema, composto pelo sistema operacional Linux,
bibliotecas necessárias, KDE 2, Kppp, Konqueror e KEdit, em
apenas 15,5 Mb. Mas todo esse esforço passará
desapercebido ao usuário, dada a facilidade de uso do sistema
final.
Assim que a máquina é ligada, a
operação de boot dura cerca de dez segundos, e o sistema
entra diretamente no modo gráfico, sem permitir o
serviço de login. O sistema loga o usuário como
"root", mas esta é uma falha que já
está sendo corrigida, pois, segundo o coordenador do projeto,
professor Sérgio Campos, a segurança é
extremamente importante. Já no modo gráfico a primeira
coisa a ser notada é que a apresentação do KDE
foi levemente modificada para tornar o sistema mais intuitivo. O
botão do "K" (que funciona como um menu iniciar)
não existe, e no seu lugar está um atalho para a pasta
/home do usuário. Não há listas de aplicativos
abertos ou ícones no desktop, e para iniciar um aplicativo
basta clicar em seu ícone na barra de tarefas. Também
não existe qualquer referência a um console ou terminal
(para que um usuário comum precisaria de um XTerm?). O
gerenciador de janelas KWin, padrão do KDE, foi
substituído (temporariamente) pelo TWM, e além dos
aplicativos já instalados na Flash será possível
executar qualquer aplicativo armazenado em um servidor NFS. KOffice,
XMMS e MpegTV estavam disponíveis dessa forma.
Primeiras impressões
Apesar das limitações do projeto, um teste de
desempenho da máquina revela excelente performance, sem a menor
amostra de lentidão, mesmo tocando MP3, um vídeo MPEG e
navegando ao mesmo tempo. No quesito navegação, o
Konqueror se mostrou muito rápido e preciso ao exibir os
vários sites testados. O tempo de inicialização
da máquina também é extremamente rápido, e
graças ao fato de o sistema de arquivos na Flash ser montado
como read-only pode-se tranqüilamente "chutar" o
botão de power sem se preocupar com um fsck e dezenas de
arquivos a mais aparecendo no .lost+found. Contudo, isso também
impede o uso do cache do navegador (o uso de um servidor proxy resolve
o problema), do swap do sistema operacional (que, sinceramente,
não fez falta nenhuma) e a gravação de arquivos
pessoais feito pelo usuário, visto que a máquina
não possui drive de disquete. A idéia é fazer o
armazenamento desses arquivos via Web, algo como uma espécie de
"disco virtual". No geral a máquina é bastante
promissora e tem um alto potencial para o sucesso. Dadas as corretas
condições para venda e distribuição, ela
pode causar uma revolução no acesso à Internet no
Brasil e, quem sabe, se tornar um modelo para a
popularização do acesso em outros países.
Para saber mais
Anúncio oficial do Ministério da Ciência e
Tecnologia: www.mct.gov.br/sobre/noticias/2001/31 01.htm
Departamento de Ciência da Computação da UFMG: www.dcc.ufmg.br
Laboratório de Universalização do Acesso à Internet: www.luar.dcc.ufmg.br
O papel do Fust
O Fundo de Universalização dos Serviços de
Telecomunicações é constituído por 1% da
receita das operadoras de telefonia, TV por assinatura e outros
serviços de telecomunicações. Esse recolhimento
deve chegar, neste ano, a cerca de R$ 1 bilhão de reais. A
atual regulamentação do Fust prevê que somente as
operadoras de telefonia podem participar da licitação de
compra dos equipamentos, mas a idéia é que os outros
contribuintes do fundo, como as empresas de telefonia móvel e
de TV por assinatura, também possam ser ressarcidas, a partir
do momento em que cumprirem seus objetivos de
universalização.
um meio barato de acesso à internet
O professor Sérgio Campos é o coordenador do projeto
do microcomputador popular, tem 35 anos e é formado em
Ciência da Computação pela Universidade Federal de
Minas Gerais (UFMG).
Ele tem mestrado em Ciência da Computação
também pela UFMG e doutorado em Ciência da
Computação pela Universidade Carnegie-Mellon, nos
Estados Unidos. Desde o início de janeiro, Campos coordena uma
equipe de seis pessoas, sendo três professores e três
alunos de pós-graduação. A equipe levou apenas
quinze minutos para montar a parte de hardware do protótipo.
"O fato de usarmos hardware-padrão de PC facilitou muito
as coisas", salienta Campos. O projeto conta com o suporte
financeiro do Comitê Gestor de Internet e o apoio do
Departamento de Ciência de Computação da UFMG. O
professor Sérgio Campos concedeu esta entrevista à RdL,
e revela que o projeto do computador popular ainda não tem
nome. "Estamos aceitando sugestões", complementa, com
bom humor.
Revista do Linux Qual a maior dificuldade encontrada durante o desenvolvimento do projeto?
Sérgio Campos Colocar
todo o sistema em 16 Mb de Flash. Na verdade no início havia
outras questões, como a escolha do navegador. Chegamos a
pesquisar o Opera, que é um browser pequeno, mas não
é software livre. Eventualmente nós chegamos ao
Konqueror, que é software aberto, é muito bonitinho, mas
na época não funcionava muito bem. Engraçado que
o "na época" se refere a um mês atrás.
Com as versões mais novas ele passou a funcionar muito bem,
então não havia motivo para usarmos um navegador que
não fosse software livre. Outra questão era a escolha da
suíte de aplicativos Office, e nós nos decidimos pelo
KOffice. Mas esta não é uma decisão definitiva,
visto que o KOffice é um software muito novo, e ainda
não incorpora toda a funcionalidade desejada, então
estamos pesquisando novas alternativas.
RdL Vocês chegaram a
estudar a possibilidade de algum outro sistema operacional, um *BSD,
por exemplo?
SC Para quê? Fomos direto
ao Linux. Nós chegamos a fazer uma experiência em nossos
cursos com o FreeBSD no semestre passado e ela não foi muito
positiva, pelo simples motivo de que há menos
informações disponíveis. Os alunos que usaram o
FreeBSD tiveram mais dificuldade do que os alunos que usaram Linux. O
Linux cresceu muito nos últimos tempos, então até
mesmo a chance do surgimento de um "device driver" para um
dispositivo específico é maior no Linux do que no *BSD,
e isso para nós é um critério importante.
RdL Qual a
situação atual do projeto?
SC O projeto deve durar seis
meses, só passamos por um mês e meio, sendo que metade do
último mês foi gasto respondendo aos repórteres
(risos). Ainda há muito por fazer, o que temos hoje é
uma máquina básica. Até agora só provamos
que é possível.
RdL A máquina atual
é um protótipo. A especificação do
hardware pode mudar até a chegada de uma "versão
final"?
SC Pode e vai mudar. O
Processador K6-2 de 500MHz, por exemplo, saiu de linha. Algumas coisas
irão mudar, mas para nós isso não importa, pois
consideramos o hardware como algo "secundário". O que
importa é a facilidade de acesso à Internet provida pelo
software, e o custo final.
RdL Qual o público-alvo
da máquina? Ela será usada primeiro em escolas,
repartições públicas, universidades etc. ou
estará disponível para qualquer um que estiver
interessado?
SC A idéia do governo
é disponibilizar a máquina a qualquer interessado. Em um
primeiro momento escolas, universidades, bibliotecas e
repartições públicas seriam as beneficiadas, mas
o plano final é financiar essa máquina em casas
lotéricas, para que toda a população possa ter
acesso. Por isso fizemos a máquina com dois modos de
conexão à Internet, via rede e via modem.
RdL Com um meio barato de
acesso à Internet amplamente disponível, teremos um
número potencialmente grande de pessoas que têm pouco (ou
nunca tiveram) contato com um computador, e que certamente
precisarão de treinamento no uso desta máquina. O
governo pretende fornecer algum tipo de treinamento a esses novos
usuários?
SC Não que eu saiba. Mas
a interface é muito simples, muito parecida com o que existe
hoje, então, por menor que seja o conhecimento de computadores
de determinada pessoa, ela conseguirá usar o sistema. Sem
dúvida é uma questão interessante, mas que, por
enquanto, não tem uma resposta oficial.
RdL O protótipo atual da
máquina não tem um drive de disquete. Sendo a
máquina indicada para uso pessoal, como fica a questão
de armazenamento dos arquivos do usuário? Caso ele queira
salvar um texto ou um e-mail, por exemplo?
SC Disquetes atualmente
não servem para nada. Você digita um texto um pouco mais
longo em um processador de textos e ele não cabe mais no
disquete. Nossa idéia é fazer o armazenamento desses
dados de forma remota, em um servidor. Em uma escola ou ambiente com
várias máquinas ligadas via rede isso é
fácil, e em casa não seria tão difícil.
Algo como um "drive virtual", por exemplo. Existem outras
possibilidades: alguns fabricantes acenaram com a possibilidade de ser
adicionado um leitor de cartões "Compact Flash", que
são cartões fisicamente pequenos, mas com boa capacidade
de armazenamento de dados.
RdL Falando em memória
Flash e armazenamento, o protótipo atual da máquina
utiliza como "HD" um Disk-On-Chip de 16 Mb. Suponha que eu
compre uma máquina hoje e que em um ano haja uma nova
versão do software disponível. Como poderia ser feita a
atualização do sistema?
SC O Disk-On-Chip é
regravável, portanto o usuário poderia, por exemplo,
fazer o download de uma atualização e instalá-la
sozinho. Lógico que esse processo deve ser feito de forma
cuidadosa, pois uma atualização incorreta pode impedir o
funcionamento da máquina. Essa é uma das áreas
que estamos pesquisando.
RdL Qual foi a
reação do governo durante a apresentação
da máquina?
SC A reação foi
muito positiva, todos ficaram interessados na máquina, e
não houve ninguém para se opor à idéia. O
governo nos disse "pode fazer!", mas é claro que o
governo é um órgão complexo, existe uma certa
burocracia no processo, e provavelmente muita água irá
rolar debaixo da ponte até que tudo efetivamente
"aconteça".
RdL Foi divulgado na Internet
que este computador popular poderia chegar ao mercado em 120 dias. O
senhor acha que esta é uma data "factível", ou
pode demorar um pouco mais?
SC Essa é uma
decisão que cabe à indústria. É
possível, mas devido aos processos necessários para uma
indústria colocar uma máquina dessas no mercado, fica
difícil dar uma previsão.
RdL Na Internet está se
formando um movimento voluntário destinado a prestar suporte a
essa máquina. O que o senhor acha dessa iniciativa?
SC Estou sabendo dessa
iniciativa agora, mas acho excelente! Creio que o espírito
é esse. Nosso objetivo é espalhar essas máquinas
o mais longe possível, e qualquer iniciativa nesse sentido
é muito bem-vinda.