Incongruências e mitos
A resistência ao Linux por algumas organizações é motivada muitas vezes por omissão, favorecimentos e até preguiça
Por que ainda há profissionais que resistem a experimentar alguma distribuição GNU/Linux? Não digo embarcar no modismo underground e adotar o sistema operacional apenas para ser diferente, falo de avaliar o produto como se costuma - ou deveria - fazer com qualquer software proprietário ou livre antes de adotá-lo para uso pessoal ou recomendá-lo a um cliente.
Há algum tempo, os informatas precisavam exercer todo seu poder de persuasão para vencer o ceticismo dos clientes. Era preciso oferecer provas da eficácia e confiabilidade, tanto do hardware quanto dos softwares, antes de conseguir espaço para o monitor de fósforo verde em cima da mesa do escritório de alguém. Essa época passou rápido. Hoje, é comum qualquer profissional ostentar com orgulho um desktop ou notebook sobre a mesa de trabalho. Informática virou assunto trivial.
O fenômeno de disseminação das Tecnologias da Informação e em particular da Informática deve-se em parte ao advento da interface gráfica com o usuário e ao uso de dispositivos apontadores como o mouse. As gerações mais recentes de usuários não especializados, via de regra, não sabem distinguir o modo texto do gráfico e só por acidente são confrontados com um prompt de comando.
Não é saudosismo, nem estou defendendo que a verdadeira Informática é feita de 'escovar bits'. Mas em todos esses anos de atuação na área, quer como desenvolvedor, consultor de TI em projetos culturais ou lecionando em cursos de capacitação e atualização tecnológica, e mais recentemente como professor universitário, nunca encontrei tanta falta de bom senso como agora se observa na disputa entre software livre e proprietário. Nem no tempo dos monitores de fósforo verde a resistência ao novo era tão irracional.
De fato, parece que os informatas passaram tanto tempo 'empurrando mouse' de uma janela para outra que já nem se lembram dos critérios mais fundamentais empregados na aferição e avaliação de soluções informatizadas. É claro que as corporações internacionais ligadas ao software proprietário jogam um papel decisivo na formação dessa mentalidade reacionária.
Não se trata de uma teoria da conspiração a mais e sim de constatar que até 1999 o software proprietário reinava absoluto nos centros de formação tecnológica através de convênios e parcerias entre universidades e as grandes corporações. Essa estratégia mercadológica - muito difundida ainda hoje - forma especialistas em softwares proprietários dessas corporações e não verdadeiros especialistas em TI.
Ao ingressar no mercado de trabalho, esses especialistas em janelas e mouse passam a constituir um autêntico cartel de expertise em software proprietário. É claro que resistirão, por princípio, a qualquer novidade que não siga o único padrão aprendido na faculdade. Informatizar uma atividade virou sinônimo de enquadrar o cliente na cama de Procusto das soluções proprietárias conhecidas e, quase nunca, de estudar um projeto mais adequado às necessidades específicas da empresa.
Desconfio que a resistência seja a forma encontrada para ocultar a preguiça quase generalizada de pensar soluções de TI realmente criativas e fora dos formatos vigentes. Tanto o especialista quanto o cliente partem do pressuposto de que só há um sistema operacional possível de ser utilizado em aplicações 'sérias'. Mais tarde, as dificuldades impostas pela escassez de recursos financeiros da empresa, aliada ao custo extorsivo das licenças dos softwares proprietários, acaba por comprometer todo o projeto e fazer a empresa descambar para a cópia ilegal de software.
Há bons exemplos das distorções que esse tipo de resistência provoca em áreas tão diversas quanto as acadêmica e de arrecadação de impostos. Na atividade acadêmica, os periódicos nacionais - independente da especialidade - ao divulgar suas normas de publicação especificam formatos de software proprietário para arquivos e fontes de caracteres. Logo, o pesquisador que deseja submeter seus textos para publicação nestes periódicos deve adquirir antes uma licença do software proprietário. São raros os periódicos que aceitam artigos no formato LaTeX ou mesmo Rich Text Format.
Os intermináveis formulários requisitados pelas instituições oficiais de incentivo e fomento à pesquisa são outro exemplo das distorções na área acadêmica. Os currículos, relatórios de pesquisa e demais documentos acadêmicos necessários ao funcionamento burocrático dessas instituições são gerados em softwares que dependem de sistema operacional proprietário. Será que a idéia é forçar a utilização de parte dos recursos destinados à pesquisa para a aquisição de software proprietário?
O caso de distorção mais expressivo ocorre todos os anos quando temos que apresentar a Declaração do Imposto de Renda para a Receita Federal. Os softwares empregados no cálculo e envio do IR são distribuídos gratuitamente pela Receita. Entretanto, até o momento, só existe versão dos softwares para um sistema operacional proprietário. Não posso imaginar nenhuma desculpa razoável para justificar o fato destes softwares ainda não terem sido portados para GNU/Linux.
Será que alguém acredita que cada um dos contribuintes - pessoa Física ou Jurídica - adquiriu uma licença para o sistema operacional que a Receita elegeu para distribuir os softwares do IR? Claro que não. É improvável que a Receita Federal não saiba disso. Então, por que continuar exclusivamente a distribuir os softwares da Receita Federal unicamente para um sistema operacional proprietário?
Atitudes como as apresentadas acima só podem ser encaradas ou como omissão em relação a uma evidente violação da lei de propriedade intelectual ou como favorecimento de empresa privada por parte de instituições públicas. Até que esta incongruência seja reparada, os contribuintes serão forçados a continuar usando software proprietário para calcular e entregar sua declaração de IR.
Quando a preguiça encontra o mito
No Brasil, usamos com certa dose de cinismo termos politicamente corretos para atenuar as carências mais evidentes. Escondemos nossa situação de subdesenvolvimento em palavras como 'país emergente', 'país dependente tecnologicamente'. Por outro lado, criamos leis de proteção à propriedade intelectual que na verdade protegem mais os interesses das grandes corporações internacionais do que os nossos próprios e adiamos a aprovação de leis que realmente trariam algum avanço social e econômico.
Para retardar a adoção de uma postura que elimine ou pelo menos reduza nossa condição de atraso tecnológico, agarramo-nos a mitos que nos impedem de enxergar alternativas eficazes para virar o jogo. Por certo, todos já ouvimos afirmações como: Linux é difícil. Linux é coisa de hacker. Linux nunca vai superar o outro sistema.
Mencionar fatores como estabilidade, segurança, confiabilidade e o crescente surgimento de novos aplicativos em argumentos a favor da adoção do Linux não é suficiente para persuadir os mais reticentes a perder o medo e experimentar uma distro Linux. A preguiça intelectual e o comodismo falam mais alto que qualquer argumento; por mais sensato que seja.
Não há software perfeito. Mas há softwares caros. É falácia dizer que software livre é de qualidade inferior, e que empresas que o utilizam ficam isoladas de seus parceiros e clientes e acabam superadas pela concorrência. São estes alguns dos mitos mais recorrentes utilizados para manter os usuários num ambiente de ignorância confortável.
A monogamia de soluções e a estratégia mercadológica das grandes corporações de software acabam levando as empresas a situações limite. Pressionadas por custos cada vez mais elevados para manter o parque informático atualizado e enfrentar as constantes oscilações financeiras, as empresas brasileiras de pequeno e médio porte são forçadas a buscar opções compatíveis com o volume de seus recursos.
Quando o mito encontra o custo
É num destes momentos críticos que o Linux acaba despontando como a solução mais adequada. Conheço poucas empresas que aderiram ao Linux de caso pensado; voluntariamente. A adoção do Linux ocorre em geral quando uma dificuldade de ordem técnica/financeira cria um impasse e obriga o CIO da empresa a "arriscar com esse tal de Linux" e instala um servidor para "testar se esse negócio de fato funciona".
Como os "testes" resultam satisfatórios e o upgrade do parque instalado é prorrogado por mais alguns meses ou até anos, o Linux ganha status de "nova solução". Aos poucos os servidores com software proprietário dão lugar a servidores Linux. E essa decisão quase sempre não tem volta.
A pergunta que me ocorre nestes casos é uma só: por que não testaram antes? Preconceito? Desinformação? Seja qual for, a resposta envolve um currículo honesto e para a formação dos profissionais de TI. Para romper o círculo vicioso, devemos começar já a capacitar profissionais "poliglotas" e que sejam capazes de criar soluções informatizadas no maior número possível de sistemas operacionais.
A monogamia com software proprietário submete instituições de ensino, pesquisa, empresas e a sociedade como um todo. Os centros de formação profissional devem cuidar para que não se transformem em meros replicadores de um modelo tecnológico que certamente não é o mais adequado para um país como o nosso.
O Linux já deu provas de que tende a ser cada vez mais uma alternativa às soluções proprietárias. Argumentos como o da inexistência de aplicativos não são definitivos. De fato, o estado da arte de muitos projetos da comunidade de desenvolvedores que produz sob licença GPL/GNU já atingiu a maturidade.
Exclusão digital é mais um destes termos politicamente corretos que freqüentam os discursos de políticos e de militantes engajados no movimento social, quando se referem às pessoas que não têm contato com um computador. "Eles não sabem informática" - diz a propaganda de um curso livre na TV. "Precisamos acabar com a exclusão digital" - afirma o representante de uma ONG. Iniciativas que visem a reduzir o número de "excluídos" apenas dando-lhes uma suposta proficiência no uso de teclado e mouse durante umas poucas sessões com aplicativos proprietários do tipo Office devem ser olhadas com desconfiança, pois, independente do propósito, o que elas fazem de fato é substituir a exclusão digital pela escravidão ao modelo imposto pelo software proprietário.
Especialistas em janelas e mouse constituem-se em um autêntico cartel de expertise em SW proprietário
A adoção do Linux ocorre em geral quando há uma dificuldade que obriga o CIO a "arriscar com esse tal do Linux"
Samuel Bueno Pacheco - sbueno@candidomendes.edu.br