O médico e o monstro
O coordenador geral do projeto LDP (www.linuxdoc.org)
não é um profissional de informática, ou mesmo da área
de tecnologia. No último ano da Faculdade de Medicina da
Universidade Paul Sebatier, em Toulouse, França, Guylhem
Aznar fala em entrevista exclusiva sobre os novos rumos da
documentação do Linux, do trabalho voluntário em todas
as áreas e da resistência que o Linux ainda encontra, mesmo em universidades. De quebra, dá uma pequena aula sobre como enviar documentação para aprovação.
Revista Do Linux - Como você entrou em contato com o Linux?
Guylhem Aznar - Não entrei... Encontrei-o por puro acaso em uma biblioteca científica e perguntei o que era aquilo era uma distribuição da Infomagic. Não acreditei que poderia ser um sistema operacional completo! Levou algum tempo até que eu me familiarizasse com ele, mas logo fiquei impressionado com suas características. Para dizer a verdade, eu li o guia Getting Started da OReilly todinho no mesmo dia em que comprei o pacote da Infomagic. Foi minha primeira experiência com unix/c/shell script. Eu conhecia muito bem o trio DOS/Pascal/Basic (sim, joguem pedras!), mas me senti imediatamente atraído pela flexibilidade e potência do Linux.
RdL - E o processo de implementação do Linux na sua universidade?
Guy - Foi um processo passo a passo: o Linux foi instalado primeiro como um firewall, ou seja, um kernel inicializado em um PC sem discos rígidos. Depois, utilizamos o GNU/Linux em nossos servidores, ou seja, um kernel Linux com ferramentas GNU, servidores de rede, etc. Finalmente, em uma terceira etapa, utilizamos o Linux como sistema para desktop com ferramentas como o Gimp e o StarOffice. Atualmente, temos uma dupla de servidores robustos e estações Linux para uns duzentos usuários, número que cresce todos os anos. Todos usam os mesmos recursos em qualquer máquina, devido ao NIS.
RdL - Como foi a aceitação do Linux pelos estudantes?
Guy - No processo que descrevi antes, os passos um e dois foram transparentes. Ninguém "enxergava" o Linux ele estava apenas nos servidores e
firewall. A terceira etapa foi a mais difícil: fazer as pessoas utilizarem novas aplicações de desktop é um trabalho árduo. Tivemos que ensiná-los a contornar as pequenas diferenças entre o Microsoft Office e os novos aplicativos de escritório.
RdL - Quais foram os maiores problemas que você enfrentou na Universidade Paul Sabatier?
Guy - Tivemos dois: aceitação e assimilação. O problema com minha faculdade de medicina é monetário: por exemplo, eles querem montar um site na Web, mas não "confiam" no Linux ou na licença GPL na verdade, muitos professores e administradores de rede desejam pagar "uma grana alta" para uma companhia privada desenvolver o site, mesmo existindo na universidade os devidos talentos e competências, que podem fazê-lo melhor e de graça.
Os próprios documentos disponíveis no site serão publicados, por exigência desses mesmos professores, sob uma licença não-livre essas pessoas estão tristemente catequizadas por um enfoque comercial, muito diferente de suas idéias iniciais do começo deste ano. Eu havia iniciado projetos para ajudá-los, mas estou considerando parar com meus esforços se eles não mudarem de idéia. Pelo menos a faculdade de Ciências e sua liga de estudantes, as fraternidades e os clubes são mais sensíveis aos fatos e à economia de dinheiro é por isso que o Linux é utilizado cada vez mais na universidade e pode com vantagens substituir o Windows no desktop da maioria dos estudantes.
RdL - Quando você começou a trabalhar no LDP?
Guy - Em 97 ou 98, escrevendo documentos. Em 99 estávamos precisando de um novo líder, e eu fui voluntário. Depois que a comunidade percebeu que o outro candidato não entendeu muito bem os problemas que estávamos enfrentando e a solução para eles, fui eleito.
Estou acostumado à filosofia do free software, doando meu tempo, trabalho e conhecimento, sem compensação. Fui mantenedor do xiterm e do After
Step por muito tempo. É muito bom poder ter tempo livre para colaborar com o bem comum, tanto em ações de caridade como em algum projeto que você acredite que vá mudar o mundo.
RdL - Qual o futuro do LDP?
Guy - Gostaria que o LDP se tornasse uma organização oficial sem fins lucrativos, com a possibilidade de cooperação com projetos comerciais, ao invés do modelo atual baseado no trabalho voluntário. Poderíamos receber doações para pagar pessoas que fizessem trabalhos difíceis para o LDP, ou para alguns projetos que poderíamos patrocinar, como o envio de livros e recursos para países onde seus grupos de usuários não podem comprá-los. Educar os desempregados para ajudá-los a encontrar emprego na indústria é outro esforço que eu gostaria de ver.
RdL - Como você vê o trabalho dos LDPs locais, ou seja, os projetos nacionais de coleta e tradução de documentos do Linux?
Guy - Os LDPs locais devem ser completamente independentes desde que eles façam uma tradução fiel e usem as mesmas licenças. Eu não quero que o LDP dê "ordens específicas", ou seja, assuma uma posição restritiva. Os LDPs locais devem saber melhor do que nós o que o público local precisa!
RdL - Quais as licenças aceitas no LDP?
Guy - Qualquer licença que esteja em conformidade com o "License Guide", por exemplo, que permita distribuição livre e comercial, melhoria da documentação, etc. Nós não recomendamos nenhuma licença apesar de a FDL ser considerada preferencial pela maneira como atende as exigências do LDP. Se algum dia alguma outra licença o fizer de maneira mais apropriada voltaremos nossas preferências para ela. A OPL (Open Publication Licence) versão 1, sem as opções A e B, é uma alternativa excelente.
RdL - Como se faz para enviar um
documento para o LDP?
Guy - Muito simples: escreva (em
inglês) um documento versando sobre um assunto que você gosta e envie para ldp-submit@lists.linuxdoc.org. Caso o documento esteja escrito na língua de seu país, envie-o para seu LDP local. Por exemplo, documentos originais em português devem ser enviados para os coordenadores do LDP-BR. Uma lista está disponível no website oficial: ldp-br.conectiva.com.br. Uma lista completa de todos os LDPs do mundo está disponível no site
oficial (www.linuxdoc.org).
RdL - Como colaborar com o LDP?
Guy - Toda ajuda é bem-vinda. Estamos precisando especialmente de revisores, mas claro, também precisamos muito de documentadores que mantenham documentos existentes ou escrevam novos. Não há necessidade de nenhuma experiência anterior, apenas alguma facilidade de comunicação e carisma, fazendo com que as pessoas entendam e gostem do que você escreve. Documentação técnica é uma área traiçoeira: deve-se ater à precisão técnica sem se esquecer de quem vai ler.
RdL - Quais são as principais áreas de interesse do LDP no momento?
Guy - Novos formatos e facilidade de envio de novos documentos. Algumas pessoas estão trabalhando num editor para documentação técnica, chamado de ScrollKeeper. Sua função principal é criar e editar arquivos DocBook que nossas ferramentas possam converter, mas também fará pesquisa e atualização de documentos presentes no HD a partir da Internet, bem como mostrá-los de forma gráfica. Algo como o help do Windows não há uma ferramenta adequada para tal no GNU/Linux, e as pessoas que sugerem a utilização da dupla man/xman se esquecem dos novos usuários desktop que sequer sabem o que seja uma linha de comando.
RdL - Como o LDP vê os LDPs locais carregando em seus domínios os nomes das companhias comerciais que os hospedam?
Guy - Antes de mais nada, o LDP deve agradecer sobremaneira às empresas que doam recursos aos LDPs locais. Tais empresas são uma parte essencial no esforço LDP, uma vez que não possuímos recursos, a não ser uma conta corrente conjunta com uma organização sem fins lucrativos. Na verdade, todos os LDPs do mundo só são possíveis devido aos recursos disponibilizados gratuitamente por instituições como a Universidade da Carolina do Norte ou por distribuições como a Conectiva.
Mas, sim, isso causa alguns problemas: o LDP-BR tendo "conectiva" em sua URL pode dar a falsa idéia de que está restrita à Conectiva, e ainda pode fazer outras companhias, como a Mandrake ou a Red Hat, evitarem o uso dessa URL com medo de perder clientes.
De qualquer forma, foi decidido que cada LDP local pode solicitar um subdomínio do tipo br.local.klinuxdoc.org para ser utilizado como URL principal. Esta decisão foi tomada na nossa primeira conferência em Chapel Hill, Carolina do Norte, Estados Unidos. Foi lá que o projeto LDP começou há alguns anos e onde está o servidor principal.
RdL - Quais são suas impressões sobre os novos usuários e sua cultura "point and click"? O Linux está pronto para eles?
Guy - O Linux é um kernel. O GNU/Linux é um kernel com servidores e ferramentas a la Novell Netware ou SunOS. Gnome/GNU/Linux ou KDE/GNU/Linux são desktops como o
MacOS ou o Windows. Se essas pessoas estão usando Linux é simplesmente porque ele é gratuito e livre. Pode-se rodar o Gnome em outras plataformas livres sem que as pessoas sequer notem. Isso deve-se ao fato de as pessoas terem necessidades diferentes: os desenvolvedores precisam de um kernel, os usuários finais de um desktop. Para os
usuários finais não importa muito esse negócio de kernel e seus daemons...
RdL - Você tem uma vida sem o @ na frente? O que você faz fora do LDP?
Guy - Claro que tenho! Gosto especialmente de gastronomia. Nada é melhor que um prato típico de uma cultura que estou descobrindo durante uma viagem. Talvez eu seja assim por ser francês... Gosto de Animes, filmes de Kung-Fu e música. Recentemente comprei um walkman MP3 e adorei! Possuo pilhas de CDs que não consigo ouvir por falta de tempo. Agora ouço de três a quatro horas diárias de MP3 sem me preocupar em trocar o disco...
RdL - Você disse há pouco que estudava na faculdade de medicina? Por que medicina e não informática, ou engenharia?
Guy - Quero passar parte da minha vida ajudando as pessoas. Pode parecer estúpido, mas realmente preciso disso. Não quero passar minha vida numa busca desenfreada por poder/dinheiro/celebridade, ou o que quer que eu considere superficial. Não quero dizer que fazer isso seja ruim ou negativo, quer dizer apenas que não quero fazer isso agora.
RdL - Você tem planos de se mudar
da França?
Guy - Sim, tenho. Muitas pessoas na França não são muito simpáticas. Isso é algo que observo quando viajo. Basta fazer coisas simples, como sorrir, ajudar as pessoas, ser agradável, e tratar as minorias com respeito, coisas que os franceses não fazem.
O único lugar que encontrei nas minhas andanças onde há pessoas tão arrogantes e egoístas é na Califórnia. Há milhares de pessoas legais por lá (especialmente em San Francisco), mas também há muitos filhos da mãe que só acreditam em si mesmos ou em sua eterna jornada por superficialidades. Se pudesse escolher, eu me mudaria para o Canadá ou para a Itália. Tive a oportunidade de conhecer esses países por períodos razoáveis e as pessoas lá são muito agradáveis e receptivas. O modo de vida italiano é fantástico não há outra palavra para descrevê-lo. Talvez charmoso!
RdL - Como você vê o futuro do Linux?
Guy - Gostaria que o Linux fosse utilizado por handhelds como o Palm. Todo mundo terá um PDA no futuro, seja em um telefone celular ou num produto à parte. Esse é o futuro!