ENTREVISTA
Visão de um ciber-humanista
Quando o professor da USP, Roberto Marcondes César Júnior terminou o
doutorado em 1997, no Grupo de Pesquisa em Visão Cibernética -
GPVC-IFSC-USP, ele procurou refletir em como continuar sua carreira
científica. "Os anos que passei no doutorado aguçaram ainda mais meu
interesse por pesquisas interdisciplinares, envolvendo biologia,
física, matemática e computação". A partir do acompanhamento da
literatura científica que vinha fazendo na área de visão, ele percebeu
imediata-mente que o reconhecimento computacional de faces era uma
área que unia todas as características que procurava. As aplicações
dessa área são inúmeras, como em medicina, interação homem-máquina,
com-pressão e transmissão de dados multimídia, processamento de
vídeo digital e sistemas de se-gurança. Mas a maior máquina é o ser
humano. "Usamos intensamente análise facial na interação social,
reconhecendo a todo o momento se uma pessoa com quem falamos está
alegre, triste, entediada ou apaixonada, mesmo que nem uma palavra
seja dita", salienta César Júnior, o entrevistado do mês da Revista
do Linux, que falará de seu trabalho e dará suas impressões sobre a
formação e o papel social que os programadores, inclusive aqueles
de software livre, estão assumindo no mundo atual.
Revista do Linux - As empresas estão valorizando cada vez mais
profissionais que exerçam, de uma forma ou de outra, a
responsabilidade social. De que maneira os profissionais de
informática podem aplicar seus conhecimentos em ações com impacto
social?
Roberto Marcondes César Júnior - Devemos reconhecer essa
necessidade: vivemos numa sociedade com problemas sociais
vergonhosos, e todos precisam tentar ajudar, de uma maneira ou de
outra. Infelizmente, de tanto encontrarmos problemas como pobreza
extrema, violência e crianças de rua, temos uma certa tendência a nos
acostumarmos com isso. Além disso, como todos sabemos, produtos
tecnológicos podem ser muito caros e, infelizmente, acessíveis a
pouquíssimas pessoas. Isso não representa um fato ruim em si. Acho
ótimo se um produto caro puder ser desenvolvido aqui e alguém puder
comprá-lo: a produção desse artefato tecnológico gerou emprego e,
idealmente, pode gerar receita, na forma de impostos pagos pelo
endinheirado comprador, que deveriam ser aplicados de maneira
socialmente responsável. Você é alguém empreendedor e gostaria de
abrir uma firma de informática para, por exemplo, prestar algum
serviço importante na Internet? Ótimo, é exatamente o que o país está
precisando: avanço tecnológico, geração competente de combustível que
faça movimentar nossa economia.
RdL - O senhor dá aulas em uma das universidades mais conceituadas do
país, a USP. Qual perfil de profissional de informática a USP está
formando?
RMCJ - O Departamento de Computação, em que trabalho, é o responsável
pelo Bacharelado em Ciência da Computação da USP em São Paulo. Nossos
alunos têm uma formação voltada para software (em contraposição a
hardware), sendo muito bem preparados para atividades como
programação, administração de sistemas (redes), modelagem, atuação em
empresas de alta tecnologia, etc., dependendo do caminho particular
que cada um trilha durante sua graduação. Isso porque, durante a
graduação, os alunos podem escolher um certo número de disciplinas
optativas, o que muda a especialização de cada um no final do curso.
Muitos alunos acabam realizando atividades extra-curriculares para
complementar sua formação, como iniciação científica, estágio ou
atuação na Empresa Jr. De uma maneira geral, a formação básica,
fornecida pelas disciplinas obrigatórias cursadas por todos os
alunos, enfatizam aspectos algorítmicos e matemáticos da resolução de
problemas com auxílio do computador. Isso é extremamente importante,
visto que a tecnologia muda muito rapidamente. Dessa maneira, os
alunos não ficam treinados em resolver problemas com uma dada
ferramenta, mas sim em resolvê-los com uma metodologia genérica,
podendo se adaptar às diferentes tecnologias, na medida em que elas se
tornarem disponíveis.
RdL - Muitos profissionais saem das universidades reclamando do
distancia-mento do meio acadêmico com o mercado de trabalho. De que
forma a USP trabalha para diminuir essa distância?
RMCJ - Acho que a resposta acima indica algumas pistas como, por
exemplo, a especialização através de optativas, os estágios durante o
curso, etc. É importante dizer que os alunos podem fazer algumas
disciplinas fora do nosso instituto, como na Faculdade de Economia
Administração e Contabilidade da USP, por exemplo, o que também pode
ser usado para aproximar sua formação das necessidades que
encontrará, naturalmente, junto a empresas em que venha a atuar
depois de formado. Nós temos mesmo uma optativa chamada Leitura Dra-
mática em que os alunos apren-dem a representar peças de teatro, como
atores, o que acaba os ajudando a se expressar melhor em público, uma
qualidade essencial em muitas situações profissionais!
RdL - O profissional de informática muitas vezes sai da universidade
apren-dendo somente a usar aplicações, e não sabe programar. Boa parte
dos desenvolvedores de software livre são autodidatas. Isso decorre
da má qualidade dos cursos ofertados nas universidades brasileiras? Ou
o professor universitário não está sabendo formar programadores de
software?
RMCJ - Não acredito que os alunos egressos de cursos de Computação de
boas universidades, como grande parte das universidades públicas, não
saibam programar, e posso afirmar com toda certeza isso do curso de
computação do nosso departamento. Por outro lado, todos sabemos que
existem faculdades que não se preo-cupam com tanto rigor em formar
bons profissionais, o que acontece em todas as áreas e,
particularmente, em computação também. Vale enfatizar um aspecto
positivo que todos os profissionais de computação podem explorar, por
exemplo, enquanto fazem um curso em alguma faculdade: cada aluno pode
comparar o que e como está aprendendo a programar com outros cursos de
computação, uma vez que muitos professores têm colocado um material
muito rico na rede. Essa forma de educação à distância pode ajudar a
diminuir as disparidades da qualidade do ensino nas diferentes
instituições. Existe um aspecto importante e diferente rela-cionado a
um tópico que você mencionou, sobre software livre: claramente,
muitos excelentes programadores são autodidatas. Afinal, grande
parte deles começa na adolescência, mesmo antes de entrar ou concluir
a faculdade!
RdL - A informática parece não encontrar limites para de uma forma ou
outra fazer parte da vida das pessoas comuns. As pessoas parecem
estar cada vez mais dependentes das máquinas. Há um limite para isso?
RMCJ - Não acho que dizer que os seres humanos estejam cada vez mais
dependentes das máquinas seja um bom ponto de vista. Talvez seja
melhor dizer que o ser humano continua dependendo muito de suas
criações, fruto de sua engenhosidade, de sua capacidade de compreender
e modificar o ambiente que o cerca. Muito já se falou disso, mas vale
lembrar a seqüência de início de "2001: Uma Odis-séia no Espaço", não?
Os computadores de hoje podem ser vistos como a evolução dos
primeiros ossos e pedaços de paus, transformados em instrumentos há
milhares de anos atrás. O ser humano sempre dependeu fundamentalmente
de suas invenções. Por outro lado, podese pensar no endeusamento da
tecnologia, um fenômeno que deveria ser corrigido.
RdL - O desenvolvimento de interfaces gráficas é uma das áreas mais
produ-centes em informática. Quais sentidos humanos deverão ser mais
explorados para que as interfaces fiquem mais sofisticadas?
RMCJ - Visão, de longe, seria o sentido mais importante: basta
perceber a importância desse sentido para nós, seres humanos! Pare um
pouco e reflita sobre a seguinte questão: quais atividades você
realiza, no dia-a-dia, sem usar o sentido de visão? Mas é claro que
os outros sentidos são extremamente importantes, como a interação
com o computador através de comandos de voz, por exemplo. Podemos
pensar também na comunicação que as máquinas realizarão entre si sem
precisar interagir diretamente com os seres humanos. O Phil Agre tem
um exemplo instrutivo sobre isso: você entra numa sala de teatro e o
seu celular se comunica com o computador dessa sala, aprendendo que
ele não pode tocar e sim vibrar naquele lugar, caso uma chamada seja
recebida. Será o fim dos insuportáveis celulares tocando em lugares
como teatros, cinemas, restaurantes, salas de aula.
RdL - Uma das áreas de seu interesse é o ciber-humanismo. Por que
citou duas personalidades importantes para a comunidade Open Source
(Richard M.Stallman e Eric Raymond) como dois ciber-humanistas?
RMCJ - É interessante verificar que os bons programadores costumam
aplicar tais procedimentos de escrutínio cético cotidianamente em suas
atividades de programação: trata-se da atividade de depuração, de
"debugging", dos programas! Eric Raymond chama a atenção de maneira
corretíssima quando indica que uma das grandes forças (senão "a"
grande força) da programação de software livre é justamente a
capacidade de detecção e correção de erros dos programas através do
exame minucioso de batalhões de programadores envolvidos na criação
do código do programa! A ciência desenvolveu esse método de dúvida
permanente para produção do conhecimento e, na minha opinião, a
produção de software livre tem, a seu favor, justamente a aplicação
desse princípio na geração de software de qualidade. Mas as ligações
entre princípios humanistas e a cultura da ciência da computação,
incluindo toda a atividade envolvida na rede, não param por ai. A
importância da liberdade individual, dos direitos civis, da democracia (incluindo, claro, da democratização da informação), da contestação de verdades impostas por autoridades, e da renovação do conhecimento são freqüentemente encontrados, discutidos e divulgados em muitos pontos de encontro bem conhecidos por todos nós, como a Electronic Frontier Foundation, o NetFuture, o Slashdot, e a American Humanist Association. Acredito que o termo ciber-humanismo
possa sintetizar duas forças que se ajudam e retroalimentam, o
secular humanismo influenciando a cultura da rede que, por sua vez,
também pode influenciar no desenvolvimento humanista.
Nota
A versão integral desta entrevista, onde Marcondes Júnior fala de
maneira mais detalhada sobre Responsabilidade Social, Ciber-humanismo
e Inteligência Artificial pode ser lida no site da Revista do Linux.
www.RevistaDoLinux.com.br/artigos
Rodrigo Asturian
asturian@RevistaDoLinux.com.br