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O caso SCO x Linux

Entenda melhor os motivos por trás da batalha que está chacoalhando a comunidade Linux

Aos desavisados, caiu como uma bomba uma notícia de 23 de Maio, de que a SCO havia entrado com uma ação judicial contra a IBM, no valor de "pelo menos um bilhão de dólares", por quebra de contrato de uso do Unix envolvendo o Linux. A IBM teria reutilizado importantes partes do código do Unix no Linux, ambos sistemas operacionais por ela distribuídos. Essa reutilização estaria proibida no contrato, além de violar a propriedade intelectual que a empresa alega ter sobre o Unix System V. A IBM nega, enquanto a SCO envia carta a mais de 1.500 empresas que usam o GNU/Linux, ameaçando-as com a possibilidade de futuras ações indenizatórias.

As surpresas vêm do fato de a SCO, antes Caldera International, ter sido uma das primeiras empresas a ganhar dinheiro distribuindo GNU/Linux, e da contundência de suas ameaças, em face da ambigüidade em torno da propriedade intelectual que afirma ter. Em matéria de 29 de maio no Jornal do Commercio do Rio, o CEO da SCO é citado: "Temos o direito contratual de impedir o uso impróprio de código, métodos e conceitos do Unix no Linux".

Que contrato é esse, e o que vem a ser "métodos e conceitos do Unix"? Trata-se de um contrato pelo qual a SCO afirma ter adquirido da Novell a propriedade intelectual do Unix System V. A Novell, por sua vez, os havia adquirido em 1992 da AT&T, sua criadora. Mas a opinião da Novell sobre o que foi comprado e vendido é diferente. Seu CEO é citado na mesma matéria afirmando: "O acordo de 1995 não transferiu os direitos associados à SCO".

O bate-boca prossegue: "É claro que somos donos dos direitos e podemos exigir o respeito a eles e às patentes" disse o CEO da SCO, mesmo admitindo ser esse contrato "um pouco confuso". Enquanto o chefe da Novell pressiona: "Queremos que a SCO retire as suas afirmativas falsas a respeito da propriedade de patentes do Unix ou forneça informações conclusivas a respeito".

Já na Alemanha, onde o GNU/Linux ganha cada vez mais penetração no mercado e força nos corações e mentes dos internautas, a empresa LinuxTag entrou na justiça com um pedido de liminar, obrigando a SCO a apresentar evidências de que o Linux viola seus direitos ou retirar suas ameaças, sob pena de multas diárias. A liminar foi concedida em 4 de junho, e a única reação da SCO foi tirar do ar seu site em alemão, contendo cópia da carta-ameaça. A exposição de motivos da LinuxTag dizia: "A SCO não pode prejudicar seus competidores com alegações levianas, com ameaças a seus clientes e com difamações à reputação do GNU/Linux impunemente"

Para entendermos o que está por trás disso tudo, e quais as implicações para o futuro da informática e da sociedade informatizada, precisamos conhecer um pouco da história do Unix e daquilo que pode ser considerado propriedade intelectual do software. O nó da questão é a diferença entre direito autoral, que protege o código-fonte de um programador contra uso não autorizado, e patente, que protege um inventor com o direito de exploração industrial exclusiva da sua invenção. O fato de esses direitos serem temporários não diz muito, haja vista as extensões aprovadas quando há interesse.

"Métodos e conceitos" de programação de computadores só se tornaram patenteáveis a partir do primeiro pedido não recusado, depois de incontáveis recusas, nos EUA em 1981. É que a lei de patentes americana veda a concessão de patentes para "leis da natureza", e como tal se costuma considerar, além de bem comum, as construções lógico-linguísticas. Além disso, leis de patente também exigem que o invento seja inédito, útil e não óbvio. De lá para cá, entretanto, como numa corrida pelo ouro alquímico da revolução digital, foram concedidas mais de cem mil patentes desse tipo, por burocratas cuja noção de utilidade, obviedade e ineditismo no mundo dos bits tem se mostrado estranha, para dizer o mínimo.

Conhecidas como "patentes de software", são outorgas de monopólio através de descrições herméticas, genéricas e abstratas o suficiente para lançar advogados de bolsos fundos em verdadeira caça aos bruxos da programação autônoma, enquadrando praticamente qualquer possível idéia para se fazer algo através de software como propriedade alheia.

Para mostrar a transparência da roupa nova do rei, um advogado australiano pediu patente para o seu invento que, depois de concedida, anunciou tratar-se da patente da roda. (makeashorterlink.com/?Z1F5257E4). "Mas isso invalida a patente!", desculpa-se a autoridade australiana, enquanto acusa o advogado de má fé. Sim, mas e os tais métodos e conceitos de programação explicados em "legalês"? Fazem os bits no chip, por acaso, alguma coisa que não faz o lápis no papel?

Para os avisados, um bate boca como este entre os CEOs da Novell ou LinuxTag e da SCO, e seus desdobramentos nos tribunais, era só questão de tempo, como vem anunciando há muito Richard Stallman, fundador da Free Software Foundation (FSF). É o primeiro tiro da verdadeira revolução digital, onde se digladiam por supremacia jurídica, de um lado, a liberdade do capital para auto-organizar-se, e do outro, a liberdade humana para buscar o conhecimento. Quem detém, afinal, a posse dos "métodos e conceitos do Unix"?

O UNIX originou-se do MULTICS. A homepage do MULTICS (www.multicians.org/history.html) o descreve como "um projeto multiinstitucional, inicialmente de pesquisa, que gerou grande influência no desenvolvimento dos sistemas operacionais" O projeto prometia, na infância da computação digital em 1961, a revolucionária "programação interativa", com terminais substituindo pilhas de cartões perfurados.

O primeiro sistema operacional MULTICS entrou em uso em 1969, depois de nove anos, ainda incompleto e instável. Nesse mesmo ano, a AT&T abandonou o projeto, cujos pesquisadores envolvidos passaram a desenvolver uma alternativa viável no laboratório de pesquisa da empresa, o Bell Labs. Este sistema alternativo veio a ganhar o nome de Unix, entrando em uso em 1974, depois de reescrito na linguagem C por Thompson e Richie.

Na ocasião a AT&T era concessionária de monopólio de telefonia nos EUA, e as regras desta concessão não lhe permitiam comercializar software. Devido ao interesse das instituições acadêmicas num sistema operacional inovador e útil ao ensino da programação, a AT&T fez acordos com várias universidades pelos quais o código-fonte do Unix era cedido por uma taxa nominal, e as universidades autorizadas a fazer atualizações, correções e modificações por conta própria, algumas das quais incorporadas em versões posteriores do Unix da AT&T.

Em 1978, um dos autores do Unix - Thompson - passou um ano como professor na Universidade de Berkeley, onde ele e seus alunos escreveram a primeira versão de um sistema semelhante, que ficou conhecido como BSD (Berkeley Software Distribution). O BSD evoluiu para o FreeBSD, que, tendo ganho dos regentes da UCBerkeley uma licença open source, passou a ser livremente distribuído.

Foi só em 1983 que a AT&T recebeu permissão legal para vender licenças de software. Sua versão do Unix de então passou a ser comercializada como "System V", nome que a distingue das versões adaptadas por outras empresas sob outras licenças. Em 1992 a AT&T vendeu os direitos do System V para a Novell, que por sua vez, no ano seguinte, entrou em litígio com a Universidade de Berkeley alegando haver o BSD reutilizado código-fonte do Unix. O caso foi resolvido amigavelmente, com a reescrita de parte do BSD durante o ano de 1994, antes que pudesse voltar a ser distribuído.

Um pouco antes disso, em 1991, tendo aprendido sobre sistemas operacionais com o MINIX na Universidade de Helsinque, Linus Torvalds lançava seu kernel Linux sob licença GPL, encaixando-se esse kernel na lacuna que restava no projeto de sistema operacional GNU da FSF. Alguns atribuem o sucesso do Linux, em detrimento do FreeBSD dentre os sistemas livres, à estagnação e à incerteza que representou o ano de 1994 para os fãs do FreeBSD.

Na ocasião deste primeiro litígio envolvendo o Unix, nenhuma patente dos seus "métodos e conceitos" foi cogitada. Mesmo porque, se houvessem, poderiam ser questionadas em relação ao ineditismo, devido à sua origem em projeto de pesquisa científica, cujas publicações, na Fall Joint Computer Conference.em 1965 sacramentavam tais conceitos e métodos como de domínio público. Mas os tempos eram outros, já que a liberdade do conhecimento ainda não ameaçava o que viria a ser o maior negócio da história.

Passando por dificuldades econômicas, a SCO quer agora extorquir quem havia vencido o medo e a lógica da avareza para investir em software livre, com base em etéreos títulos de propriedade que prefere não tornar públicos. Enquanto isto, a Microsoft resolveu se adiantar, fazendo com ela um acordo - no valor de US$ 1 bilhão - a título de licença por uso de sistemas da família Unix, emprestando credibilidade a esta forma de extorsão, conhecida na informática como FUD (Fear, Uncertainty and Doubt).

As tais "patentes de métodos e conceitos do Unix", se existirem, são como moeda podre no jogo de azar monopolista da indústria de software proprietário, e serão como máquinas de loteria na mão de magistrados e jurados. Os escritórios de patentes, com suas etéreas indulgências ao mundo dos bits, ameaçam cumprir o papel dos cartórios de uma nova inquisição, lançando-nos numa nova Idade Média, como preconizado por George Orwell em 1984, se nossa sociedade se deixar enfeitiçar pela religião da avareza. Se a justiça e os negociadores de acordos internacionais desprezarem os valores humanistas pela supremacia de uma cenoura mítica que nos balança o fundamentalismo neoliberal.

Nosso maior desafio doravante é o coração e a mente de juristas.


Prof. Pedro Antonio Dourado de Rezende - rezende@cic.unb.br


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