Documentação do Software Livre
As licenças dos sistemas operacionais e softwares proprietários visam apenas a limitação da liberdade. As licenças Gnu caminham no sentido inverso
Com o impacto dos sistemas Gnu/Linux, das diferentes distribuições Linux, o software livre está felizmente bem conhecido entre nós, e revelou-se um enorme sucesso planetário. Uma das formas de distribuição livre de um programa de computador é a Gnu Public License, a conhecida GPL. A maior parte dos programas empacotados nas distribuições Linux é distribuída sob os termos da GPL. Encontramos, por conseguinte, uma enorme diversidade de softwares distribuídos sob os termos desse licenciamento. Os conceitos embutidos na GPL são por certo vencedores. Se tomo como exemplo um programa do tipo scanner de rede, um software para investigar ou auditar o tráfego de rede, temos isso sob GPL de todos os tipos: scanners com visual GTK, GNOME, Qt, ou ainda no mais puro script TK/TCL apenas no terminal? Claro! Temos com a biblioteca ncurses, ou apenas usando a saída-padrão, ou com cores ANSI; construídos com o tradicional BSD sockets, ou com a mais sofisticada biblioteca libpcap... Mas tenho certeza de que alguém, neste instante, digamos... na Bulgária, estará distribuindo amanhã sob GPL um novo scanner de rede!
Uma licença é um documento que permite a distribuição e cópia de um software dentro de determinadas circunstâncias. Em tese ela estabelece um copyright que pode proteger o proprietário de algum bem intelectual.
O proprietário do copyright por sua vez possui alguns direitos exclusivos sobre essa propriedade, e pode consignar, seja vender ou dar, tais direitos para outras pessoas. Em suma, a licença é tal documento que autoriza a utilização de sua propriedade intelectual. Dessa forma, no caso de softwares comerciais e proprietários você não compra um software, mas sim uma licença de uso do programa. Percebemos então que software não pertence propriamente a você, pois ele permanece propriedade do editor (empresa, softhouse, etc.) ou propriedade do autor. As licenças dos sistemas operacionais e softwares proprietários visam apenas a limitação da liberdade. A limitação da liberdade de conhecer o código-fonte, de copiá-lo, redistribuí-lo, alterá-lo conforme às necessidades da sociedade. As licenças Gnu caminham no sentido inverso... Por isso, é preciso ter em mente a importância histórica das licenças da Free Software Foundation. Tais licenças não são textos puramente formais e vazios. Eles tentam garantir de forma prática a existência das quatro liberdades preconizadas pela filosofia Gnu:
Liberdade 1: Liberdade de executar um programa para qualquer intento.
Liberdade 2: Liberdade de estudar um programa, e adaptá-lo às suas necessidades.
Liberdade 3: Liberdade de redistribuir cópias e assim ajudar o seu vizinho.
Liberdade 4: Liberdade de melhorar o programa e entregar tais melhorias para a comunidade.
Para um software ou um documento receberem o predicado de livres, devem cumprir e realizar essas quatro liberdades.
A FSF possui dois tipos de licenciamento: um para software e outro para documentação. Assim, ao lado da conhecida GPL existe uma outra modalidade de licença, a GNU Free Documentation License (GFDL ou FDL), que, por sua vez, complementa a GNU GPL. Ela não tem ainda o destaque devido, e muitos colaboradores publicam documentos e tutoriais usando uma referência a GPL. Isso não é em absoluto indevido, mas se tornou de certa forma obsoleto. Na Revista do Linux número 12, pôde-se observar o coordenador geral do Projeto LDP, Guylhem Aznar, fazer uma opção preferencial pela FDL em vez de outro tipo de licença. Seria importante que a comunidade do software livre no Brasil desse impulso a essa modalidade de licença, já que ao longo de 2000 e parece ser uma tendência houve um crescimento significativo de documentação livre sobre Linux disponível na Web. Os usuários e profissionais querem e precisam aprender; o software livre precisa de documentação livre.
Na licença para documentação livre se aplicam grosso modo os mesmos conceitos da GPL: por isso mesmo, a documentação livre, tanto quanto software livre, é uma questão de liberdade e não somente de preço. Por isso, o preâmbulo da GNU FDL:
"O propósito desta licença é permitir que um manual, livro texto, ou outro documento escrito seja "livre" no sentido de liberdade: assegurar a todo mundo a liberdade efetiva de copiá-lo e redistribuí-lo, com ou sem modificações, de maneira comercial ou não. Num segundo termo, esta licença preserva para o autor ou para quem publica uma maneira de obter reconhecimento por seu trabalho, ao mesmo tempo em que não se considera responsável pelas modificações realizadas por terceiros".
Já é possível perceber que a necessidade de uma licença que seja específica à documentação surge por conta das especificidades da publicação de um documento. O primeiro ponto em destaque já aparece aqui no preâmbulo da FDL. Ela nos garante que nosso documento possa ter "partes ou seções invariantes". Ou seja, podemos conservar trechos de um manual que não desejamos alterar. O objetivo disso é conservar partes que seriam não-técnicas de um manual, em que se expõem temas que têm caráter geral, por exemplo: temas filosóficos, éticos, etc. Tais partes invariantes são opcionais e não-obrigatórias na documentação livre, mas é obrigatório que seja dito se há partes invariantes ou não. Richard Stallman escreveu uma pequena e esclarecedora nota sobre esse aspecto central da FDL chamada How to use the optional features of the GFDL. No entanto, perceba que a indicação do uso ou não aparecerá na nota de copyright do documento.
Assim, se deseja usar a licença em um documento, manual ou texto, simplesmente inclua uma cópia da licença no próprio documento e ponha o seguinte aviso de copyright depois da página em que aparece o título:
Copyright © ANO SEU NOME.
Outorga-se a permissão de copiar, distribuir e/ou modificar este documento sob os termos da Licença de documentação Livre GNU. Versão 1.1 ou qualquer outra versão posterior publicada pela Free Software Foundation; com as Seções Invariantes sendo (LISTE SEUS TÍTULOS), com os Textos da Página de Rosto sendo (LISTE-OS), e com os textos da Contracapa sendo (LISTE-OS).
Uma cópia da Licença é incluída na seção intitulada "GNU Free Documentation License".
Se o documento não contiver seções invariantes deverá ser incluída a frase "sem seções invariantes". O mesmo se passa com os textos da página de rosto e da contracapa; deve ser assinalada a sua inexistência na documentação!
Um exemplo, digamos que o autor José da Silva deseja que seu documento tenha a seguinte seção invariante "O que é liberdade?", e que seu documento não possui textos suplementares, assim ficaria sua advertência de copyright:
Copyright © 2001 José da Silva.
Outorga-se a permissão de copiar, distribuir e/ou modificar este documento sob os termos da Licença de documentação Livre GNU. Versão 1.1 ou qualquer outra versão posterior publicada pela Free Software Foundation; com as Seções Invariantes sendo apenas "O que é liberdade?", sem Textos da Página de Rosto, e sem textos da Contracapa.
Uma cópia da Licença é incluída na seção intitulada "GNU Free Documentation License".
Note que a dinâmica da FDL é a mesma da licença de software! Se alguém publica um manual sob FDL, a comunidade ganhará um documento livre... Ele poderá enfim ser alterado e copiado livremente, retendo o copyright, e jamais se tornando um documento não-livre. Da mesma forma que alguém pode alterar as linhas de um código-fonte, poderá alterar as linhas de seu manual, excetuando-se as partes chamadas invariantes.
Outra importante especificidade da licença é que ela define dois tipos de distribuição e cópias de documentação. Seu documento deverá ter com isso algo assim como uma cópia transparente e uma cópia opaca. A primeira é todo documento que pode ser "lido" por um computador, e cuja especificação está disponível para o público em geral. O seu inverso são as cópias ditas opacas: em geral produzidas por softwares que geram formatos que são proprietários, e que assim exigem editores ou formatadores de textos proprietários. Observe na tabela alguns exemplos, não exaustivos, de formatos opacos e transparentes:
Opaco |
Transparente |
PostScript |
ASCII puro |
Adobe PDF |
Texinfo |
Word, WordPerfect, etc. |
Latex
SGML, HTML e XML |
Deve-se ter em conta que o formato XML quando possui um esquema ou modelagem DTD (Document Type Definition) não disponível publicamente passa a ser considerado pela licença como opaco o mesmo acontece com o formato SGML. Se a W3C, consórcio que regula os padrões Web, vier a desenvolver uma alternativa ao DTD, como tem sido conjecturado, valerá ainda a mesma lógica.
A regra que a FDL estabelece é que se publicadas ou distribuídas cópias opacas de um manual acima do número 100, então deve ser incluído 01 na cópia transparente do mesmo manual. Ou ainda, como alternativa, que essa cópia possa estar disponível on-line, como, por exemplo, num servidor FTP anônimo.
Talvez esse ponto da formatação do documento cause alterações, sobretudo aperfeiçoamentos, na FDL. Pois, com a evolução do livro ou documento digital e com o crescimento de sua importância, haverá uma tendência à criação de formatos que restrinjam a cópia e a alteração desse tipo de documento. Parece ser esse o desejo do consórcio Open eBook, criado em 1998 pela Microsoft, a Barnes & Noble e a Penguin Books, entre outros, que querem usar o XML como um padrão futuro para o e-livro, acrescentando-lhe uma forte tecnologia de "segurança" anticópia.
Renato Martini
rmartini@cipsga.org.br