Opinião
Receita de sucesso
Enquanto escrevo este artigo, eu e milhares de outros brasileiros estamos revirando nossas gavetas em busca de notas dedutíveis do imposto de renda para organizar nossas declarações. Lembro de quando era criança e via meu pai debruçado sobre um formulário enorme, detalhando seus ganhos e gastos, arquivando um monte de notas em uma pasta num fichário de aço ao lado da escrivaninha.
Hoje continuamos tendo que revirar gavetas atrás das notas, mas o formulário e seu envio já não são necessariamente os mesmos. Possuímos um veículo de transmissão de dados muito eficiente, podemos preencher nossas declarações de imposto de renda em um formulário eletrônico que garante a consistência de nossos dados, nos permite errar e corrigir sem rasuras, permite que nossos dados caiam imediatamente nos computadores da receita federal, sem ter que ser digitados, economizando tempo e eliminando do processo mais uma intervenção humana, passível de erro. Um sonho tornado realidade pela tecnologia, e o melhor de tudo: disponível a todos os brasileiros informatizados. Todos?
Aparentemente não para mim e para muitos outros, porque o programa que dá acesso a tal praticidade está disponível para apenas um sistema operacional, que não é o que escolhemos.
É louvável o esforço do pessoal da Receita em desenvolver tal sistema e popularizá-lo. É bom para o país, é prático para as pessoas, mas ele incorre em um erro comum: o de confundir computador com sistema operacional, e sistema operacional com um único produto específico. Tornando assim “computador” sinônimo daquele produto, pela regra da transitividade.
Muito embora a provável justificativa da escolha se baseie, para variar, em dados estatísticos (afinal 95% das pessoas usam, não é mesmo?), involuntariamente uma mensagem acaba sendo passada para todos: se você quer participar ativamente da vida do seu país, você precisa de um computador com aquele particular sistema.
Desde quando um cidadão deveria ser obrigado a comprar ou usar um determinado produto (de uma empresa estrangeira, diga-se de passagem) para poder cumprir com seus deveres? É uma situação constrangedora, ao menos para mim, que escolhi outro sistema.
Outra justificativa seria a de que não se tem pessoal especializado para criar as versões do programa da declaração de renda para outros sistemas operacionais. Mas existem maneiras de se fazer código independente de plataforma. Vou citar algumas opções livres, já que é nosso assunto principal aqui.
Perl/Tk : Perl é multiplataforma e está disponível para mais sistemas do que os dedos das nossas mãos e pés poderiam enumerar, assim como a ligação para a biblioteca Tk, que permite escrever uma aplicação em ambiente gráfico que irá ser executada em Unix (todos) em Windows (todos) ou Mac. Pode ser que por ser uma linguagem interpretada e o código fonte acabar disponível para todos, essa não seja uma opção atraente. Eu não acredito em segurança através da obscuridade, mas tem gente que acredita.
wxWindows: wxWindows é uma biblioteca em C++ para desenvolvimento multiplataforma com mais de 10 anos de história. Uma aplicação escrita usando wxWindows pode usar GTK em Unix e ser recompilada em Windows usando seu toolkit nativo. Versões para Mac OS e Mac OS X estão disponíveis, embora sejam mais recentes. A wxWindows, além de criar uma camada de independência de plataforma para programação em ambiente gráfico, também abstrai a programação em rede.
Junte-se isso à biblioteca OpenSSL para criptografia dos dados e temos todos os elementos necessários para reproduzir a funcionalidade do atual programa adicionando automaticamente suporte para inúmeras plataformas.
Em uma democracia, não podemos excluir aqueles que desejam exercer seu direito de escolha nem restringir as opções daqueles que ainda não sabem que podem escolher.
Desde quando um cidadão deveria ser obrigado a comprar ou usar um determinado produto?
Eduardo Maçan - macan@debian.org