Revista Do Linux
 
  
  
 

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Sociedade mais justa e igualitária

Praticante de Aikido no pouco tempo livre de que dispõe, Anahuac de Paula Gil é conhecido na comunidade Open Source como fundador do projeto LESP (Linux Easy Server Project). Ele começou a trabalhar com informática aos 13 anos, quase de brincadeira, ajudando o pai a colocar os cartões para serem perfurados e lidos em um mainframe Burroughs no Centro de Processamento de Dados da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). "A partir desse momento, a informática sempre fez parte da minha vida, fosse ajudando os vizinhos, fosse realizando pequenos serviços", diz. Aos 16 anos, ele abriu uma empresa para venda de equipamentos de informática em Recife e optou por estudar Administração de Empresas em vez de Ciências da Computação. ~SO mundo da programação não me agradava. Definitivamente preferia o suporte, instalações de rede e geração de soluções~T, lembra.

Anahuac fez parte do corpo técnico na instalação do primeiro NTE - Núcleo de Tecnologia Educacional do Brasil, uma iniciativa do Ministério da Educação para criação de laboratórios de informática. Em 1998, ele decidiu se dedicar exclusivamente ao conhecimento tecnológico e assumiu a gerência de tecnologia da UNBEC - União Norte Brasileira de Educação e Cultura. "Esse é o nome da rede de escolas Maristas espalhadas pelo Norte-Nordeste do Brasil, onde realizamos trabalhos em larga escala de informática educacional", explica. Nos últimos quatro anos, Anahuac se dedica à unidade IBRATEC - Escola Técnica de Informática, localizada em João Pessoa e outras cidades. É com ele que conversamos nesta edição da Revista do Linux

Revista Do Linux - De que maneira o software livre entrou na sua vida?
Anahuac de Paula Gil - Eu já tinha evoluído quase tudo que era possível usando software proprietário. Inclusive, fiz alguns cursos autorizados da Microsoft. O reconhecimento do mercado aos meus conhecimentos com esses softwares era amplo, cheguei até mesmo a fazer algumas publicações sobre alguns desses programas. Nessa época, minha namorada era chefe do departamento de informática do SENAI/PE e sempre pegava os livros novos que chegavam na biblioteca para eu dar uma olhada. Um desses livros tratava sobre um sistema operacional chamado FreeBSD. Confesso que não me lembro bem a versão. Estimulado pela curiosidade e pela minha imensa experiência profissional, decidi instalar o sistema operacional que chamava a atenção pelo seu tamanho: Eram 4 CD's! Como se diz no popular,: quebrei a cara. Só consegui fazer a instalação do FreeBSD depois de três meses de tentativas e pesquisas na internet. Pouco tempo depois, comecei a ter notícias de um outro SO chamado Linux, e que era mais simples de instalar e usar e igualmente poderoso e estável. Comecei então a estudar a respeito e cheguei a visitar alguns sites que permitiam o download gratuitamente, mas o grande problema era a velocidade de nossas conexões: fazer o download de 650 Mb por conexão discada de 28.800 era algo simplesmente impraticável. Então aguardei a visita do Sr. Sandro Nunes à INFONORDESTE de 1996, onde ele apresentaria uma versão brasileira do Linux chamada Conectiva.

RdL - O que lhe dá mais prazer em trabalhar com software livre?
APG - A verdade é que quando apanhei feio para instalar e usar o FreeBSD e, depois, o próprio Linux, percebi que eu não passava de um "mico de circo" muito bem treinado. Costumo dizer que os grandes profissionais de software livre, que só sabem isso, não passam de experts em memorizar uma seqüência imensa de cliques. Assim, os chamo carinhosamente de ~Sclickers~T, ou seja, os clicadores. É claro que é fundamental saber a seqüência correta para que qualquer programa, SO ou aplicativo, funcione adequadamente. Manter-se restrito a isso, entretanto, é mediocridade. O ponto é que o software proprietário só permite que os profissionais se desenvolvam até esse ponto. O Software Livre permite que cada profissional escolha até onde pretende se desenvolver. Assim, existem os ~Sclickers~T em GNU/Linux, como existem os gênios em Software Livre. Definitivamente, o que mais me agrada no Software Livre é a liberdade de poder entender o que se está usando e a obrigação ética de disseminar o conhecimento tecnológico como forma de promover uma sociedade mais justa e igualitária.

RdL - Você é presidente honorário de dois grupos de usuários, dirige um instituto de tecnologia e ainda faz parte do corpo diretivo do Consórcio da América Latina e Caribe da Unesco. Como você consegue arrumar tempo para fazer tanta coisa?
APG - Podemos incluir na lista coordenador das oficinas do IV Fórum Internacional Software Livre, afinal, foi para situações como esta que a universidade me preparou. O curso de Administração de Empresas é uma escola e tanto. Cada uma destas atividades deve ser encarada como um empreendimento, com suas prioridades, necessidades, exigências, público alvo e todo o resto. Há alguns anos havia uma propaganda na televisão cujo slogan era "Quando a gente não quer, qualquer desculpa serve". Pois eu acredito cegamente nisso.

RdL - Como você avalia a utilização de software livre no Nordeste?
APG - Infelizmente a utilização é ínfima. É claro que as empresas e profissionais mais conscientes utilizam soluções baseadas em SL, mas ainda de forma tímida e normalmente escondida dos usuários finais. Isto dificulta demais a sua popularização. Parece até que estão cometendo algum crime - o seu uso é sempre cercado de misticismo e segredo. Um dos fatores que mais incentiva o uso do Software Livre é a sua gratuidade. E a verdade é que a grande maioria das empresas não paga qualquer licença pela utilização de software proprietário. O que mais chama a atenção são os órgãos governamentais, como as secretarias de educação e de ciência e tecnologia, que ainda promovem o uso de software proprietário em larga escala, despejando milhares de milhares de reais nos cofres das empresas privadas internacionais em vez de economizar e democratizar o acesso ao conhecimento tecnológico. Mas é certo que aos poucos o Nordeste, assim como o mundo, vai terminar se rendendo às vantagens técnicas, econômicas e sociais do Software Livre.

RdL - Fale mais sobre o projeto LESP. Por que o fundou e quais funcionalidades você pretende fazer nele?
APG - A verdade é que eu não suporto trabalho repetitivo. Depois de aprender a configurar alguns serviços e de saber como eles funcionavam, o trabalho de configuração dos servidores virou trabalho braçal, e isto me desagrada muito. Em 2000, decidi fazer alguns scripts para tentar automatizar o processo de configuração de servidores e os mandei por e-mail a um amigo que mora em Brasília para que me desse sua opinião. Por sugestão dele, fiz uma interface gráfica para facilitar o uso desses scripts e chamei este programa de MyConfigurator. Três meses depois, decidi transformar o MyConfigurator em um projeto Software Livre e chamá-lo de LESP - Linux Easy Server Project, que deveria englobar outras ferramentas e não somente os scripts de configuração de servidores. Desta idéia mais ampla, surgiu o LESP-CEL, um programa muito pequeno que permite que um computador usando Gnu/Linux seja controlado através de celulares. Por enquanto, o LESP está limitado ao ambiente gráfico e há muito código repetido. Estamos trabalhando na sua interface texto, além de preparar o código e as mensagens para ter suporte a gettext e, assim, facilitar a sua tradução. Além disso, todo o código que é executado para fazer as alterações nos arquivos de configuração está sendo feito de forma independente da interface. Desta maneira, teremos os arquivos de interface - seja texto, com Dialog, ou gráfica, com o TCL/TK -, os arquivos de execução e os textos devidamente separados. Esperamos que estas mudanças fiquem prontas até agosto e que facilite o entendimento do projeto aos novos colaboradores. O que mais nos agrada é que a quantidade de e-mails recebidos relatando erros ou falhas é mínima - algo em torno de um ou dois e-mails a cada três meses. Considerando um índice de download de 300 a 400 cópias mensais para um programa nacional, nordestino, só em português e destinado à configuração de servidores, este índice é bem interessante.

RdL - Uma das suas maiores dificuldades foi de encontrar colaboradores para seu projeto. Como o Brasil poderia formar mais programadores para ajudar no desenvolvimento de softwares livres?
APG - Como se pode perceber, sempre que falo no LESP, uso o plural. Isso se deve ao fato de a equipe de desenvolvimento ser composta por três pessoas: eu, mim e nós dois. O fato é que todo o desenvolvimento do LESP é feito exclusivamente por nós três. As razões nas quais eu acredito para a falta de colaboradores até o momento são: eu programo em shell script e tcl/tk, duas linguagens a que os programadores de verdade dão pouco crédito; o LESP é basicamente um agente facilitador de configuração de servidores e os gurus e especialistas do Software Livre mantêm um conflito interior quanto ao quesito facilitar, pois, por um lado, a maioria tem seus próprios scripts ou programas para isso, mas continuam exigindo que um usuário "mortal" tenha que gastar a mesma quantidade de horas que eles na frente de um computador, devorando as mesmas bíblias de livros sobre cada tema para merecerem o seu respeito. Há um certo grau de preconceito quanto aos trabalhos desenvolvidos no Nordeste por nordestinos; é como se fossem projetos apenas razoáveis, mas não bons o suficiente para receber muita atenção. Entretanto, o fato é que registramos downloads do LESP até da África do Sul, e muito nos enaltece, a nós três, poder ajudar comunidades menos privilegiadas com nosso esforço e nosso conhecimento. O Brasil ainda tem um longo caminho a trilhar. Espero que com o novo governo sócio-liberal-esquerdista-socialista, para tentar definir, exista realmente o interesse do governo em investir em educação de qualidade. Iniciativas privadas também são bem vindas, assim como as sociais através dos grupos de usuários. Entretanto não podemos esquecer que o Software Livre nasceu graças a instituições de pesquisa que tinham estrutura suficiente para manter estudantes, professores e profissionais, que não faziam nada além de bolar novas idéias.

RdL - Em que áreas você acredita que o Software Livre irá se sobressair nos próximos anos?
APG - O Software Livre deverá reinar isolado no quesito servidores. Entretanto, tudo indica que o caminho em que ele deverá se sobressair será no quesito desktop. Iniciativas como a distribuição Kurumin deverão proporcionar o acesso rápido e fácil aos usuários comuns. Isso deverá se espalhar como uma febre, como um videogame. Para quem ainda não testou, recomendo seriamente: executado a partir do CD-ROM é leve, rápido, bonito e com excelente suporte a hardware. Os fabricantes de hardware deverão acompanhar esta tendência, produzindo drivers para os sistemas operacionais livres, permitindo que câmeras digitais, scanners, algumas impressoras e alguns outros periféricos funcionem sem problema, de forma simples e prática. Uma vez conquistados os usuários, então o mundo terá provado que os humanos não aceitam o benefício do indivíduo ou da empresa em detrimento da comunidade, mas exigem o inverso - um mundo em que cada indivíduo se preocupe com o coletivo, para o bem do coletivo. Parece discurso de comunista, mas não é. A humanidade existe porque ela sempre se comportou assim.

RdL - Na sua opinião, o que falta para o Linux ser mais popular no Brasil?
APG - Acho que iniciativas como a proposta do Grupo de Usuários Linux do Peru e do Uruguai, que buscam compor um novo padrão de tecnologia para os seus governos, faria uma grande diferença. Como falar em segurança nacional se a maioria esmagadora dos sistemas de informação é fornecida por uma única empresa estrangeira? Criar uma política de soluções locais, fomentando a pesquisa e o desenvolvimento de sistemas, garantiria a soberania nacional, além de gerar inúmeros empregos, renda, centros de pesquisa, educação e desenvolvimento.

RdL - No I Seminário Nacional de Software Livre, se destacou a questão da democratização do acesso às tecnologias da informação, assim como a geração de emprego na área da informática e a utilização de ferramentas livres nas escolas. Esse é o caminho certo para a disseminação da cultura do software livre no país, ou ainda falta mais alguma coisa?
APG - A verdade é que o acesso às massas é sempre muito trabalhoso. Especialmente quando se trata de algo não tangível para a maioria delas. É impressionante a resistência de empresários, professores e profissionais de outras áreas em adotar ou simplesmente entender o que é o Software Livre e como participar do movimento. Parece algo subversivo, criminoso, ilegal. E olha que ilegal é usar um programa como o Word da Microsoft sem ter pago nem um centavo. Inclusive a grande maioria das empresas que vendem computadores já os entregam com softwares proprietários piratas instalados e induzem os consumidores a acreditar que eles pagaram por aqueles programas. Parece-me que a abordagem acadêmica é algo que está se espalhando. Milhares de universidades e cursos técnicos já oferecem cursos regulares de graduação, especialização e pós-graduação em tecnologias baseadas em Software Livre. Entretanto, o caminho é longo e tortuoso, especialmente porque as empresas detentoras de softwares proprietários não estão assistindo de braços cruzados os nossos esforços: estão distribuindo computadores com seus sistemas operacionais instalados para escolas públicas por todo o 3° Mundo, inclusive no Brasil. Este procedimento visa a continuar adestrando as pessoas em seus sistemas, camuflados pela provável "ação social" de levar tecnologia para quem precisa. As Secretarias de Educação de cada estado, cada cidade, devem prezar pela qualidade do ensino dos seus alunos assim como pela capacitação dos seus professores. Permitir que eles sejam adestrados em uma única tecnologia proprietária é um erro e deve ser imediatamente sanado pelas empresas públicas de informática. O Governo Federal deveria promover a ampla divulgação dos sistemas não proprietários e estimular a libertação tecnológica do país. Quem sabe assim, um dia conseguiremos fazer um foguete que consiga chegar ao espaço. Essa é a grande mudança de comportamento que poderá levar este Brasil ao cume do mundo: em vez de alugar nossa melhor base de lançamento de foguetes para os Estados Unidos em troca de nada, deveríamos aproveitar a oportunidade de receber, gratuitamente, a tecnologia repassada por milhões de cientistas, matemáticos, físicos, historiadores, médicos, advogados, informáticos do mundo todo e, quem sabe, fazer o nosso próprio foguete. É disso que o Brasil esta precisando há séculos: mudança de atitude.

Uma longa história de lutas

Anahuac de Paula Gil tem muita história para nos contar. Ele é neto do líder das Ligas Camponesas, Francisco Julião. Por causa do golpe de 64, sua família paterna foi mandada para o exílio em Cuba, uma vez que as relações entre Julião e Fidel Castro eram estreitas. "Na ilha, o meu pai, então com 17 anos, conhece minha mãe, que, por ironia do destino, é uma mexicana radicada em La Havana", lembra Anahuac. As ordens de Julião eram claras: Cada um dos seus quatro filhos só poderia deixar Cuba quando completasse a maioridade, ou seja, 21 anos. ~SAssim aconteceu com os meus pais. Quando o meu pai completou a idade limite, ele e minha mãe viajaram para o Chile, onde eu nasci em 1972~T, diz.

Comprometidos com a ordem esquerdista, os pais de Anahuac se associaram rapidamente aos ideais de Allende, e, em 11 de setembro de 1973, um outro golpe militar mais uma vez interfere na vida de sua família. "Fomos obrigados a ir para o México como refugiados políticos. Dá para imaginar? Exilado político com 1 ano de idade! Bem, todos os documentos foram perdidos em Santiago do Chile, confiscados pelo regime militar, e, assim, eu fui registrado mexicano. Depois de algumas voltas pelo mundo, viemos para a terra natal do meu avô: Pernambuco. Lá, fui criado e educado como bom cidadão brasileiro, cidadania a que tenho direito por ser filho de brasileiro, e a exerço até hoje", afirma.

Anahuac é, acima de tudo, cidadão do mundo e não apenas do Nordeste. "Mas também é certo que meu coração bate mais forte pelo Nordeste brasileiro do que por qualquer outro lugar". Ele mantém em sua vida uma premissa: não abandone o seu lugar. ~SÉ muito comum que as pessoas que se destacam, independente da área de atuação, sejam coletadas pelas nações mais desenvolvidas. Assim, parece quase um sonho de consumo ser convidado por uma empresa multinacional para trabalhar nos Estados Unidos, Europa ou Japão. Mas analisando com cuidado, esse é um erro muito grave: uma vez que vão embora, os bons profissionais passam a integrar a força produtiva de um país que já é rico e passa a ensinar e repassar os seus conhecimentos para outros profissionais deste mesmo país que já é desenvolvido~T, explica.

Enquanto tiver forças, ele pretende manter residência na sua região, buscando colaborar com os seus cidadãos e profissionais. "Meu sonho não é ir embora e sim ajudar a transformar esta região tão sofrida e injustiçada", destaca. Anahuac comenta também que é possível se destacar em qualquer área, desde que exista empenho, qualidade e perseverança. ~SAfinal de contas, se um técnico de informática, perdido em João Pessoa, conseguiu se inserir no cenário nacional do Software Livre, qualquer pessoa pode se destacar em qualquer área~T, conclui. (RA)


Rodrigo Asturian - asturian@RevistaDoLinux.com.br


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